4 de novembro de 2019

GISELE


                                                                                                                                                                                      
O dia amanheceu lindo e ensolarado, em homenagem a ela, pensei. A madrugada tinha sido triste e pesada, mas ao mesmo tempo libertadora. Minha irmã sofreu por longos meses uma dor imensurável, causada pelo tumor que desenvolveu no colo do útero. Incrível, oito meses são um flash desde que tudo esteja bem. O tempo tem disso, é relativo, oito meses de dor, é quase inimaginável, minutos já bastam para nos abater por completo. Na dor não existe força, bom humor, ou coisa que o valha, a pessoa fica prostrada, não tem condições de ter vontades, o desejo se concentra em uma única coisa, cessar a dor e quando isso acontece, descansa-se da dor sofrida, até que ela reinicie. Vivemos isso com ela por quase um ano. Foi possível cuidá-la e ampará-la e isso foi o que ficou. Nossa presença junto dela até o fim. Morreu rodeada de amores aos seus 38 anos. Deixou três filhos e um legado de alegria e bom humor. Da vida quis muito pouco, só queria o amor, não investiu o tempo em ganhar dinheiro, não era ambiciosa, mas era sonhadora. Era linda por dentro e por fora, amou muito, amou demais e talvez esse dom tenha sido o seu martírio.
Não é assim que é a vida? Recebemos alguns dons que acabam nos chicoteando? Ouvi isso não sei onde, acho que em um filme, mas creio que em parte é verdade, uma loucura. Penso que Deus não nos daria nada que nos levasse a infelicidade, mas é a parte humana do orgulho, da vaidade que acaba corrompendo o dom. No caso dela não foi diferente, não morreu santa, mas foi santificada pelo sofrimento. Os defeitos permaneceram até ela ir embora, sonhadora até o fim. Certa vez, quando estava internada, pediu para uma amiga uma cantoria, pedia música, não desistia de ser feliz! Aproveitou a atenção derradeira que recebeu. Minhas melhores amigas a adotaram como irmã, havia um revezamento para dormir no hospital e cuidar dela durante longas madrugadas, às vezes calmas, às vezes duras. Durante o dia minha mãe ficava e à noite a tarefa era desse grupo de mulheres que se juntaram e não se largaram até tudo terminar, sou grata a cada uma destas, são irmãs de alma.
Minha irmã e eu vivemos uma adolescência típica dos anos 80, pouca liberdade e muitos conflitos familiares. Ela era três anos mais velha que eu, e na adolescência invertemos os papéis. Eu sempre mais adulta. Ela gostava de namorar, gostava de experimentar a vida e fez isso com incrível maestria. Porém não lembro dela ter feito algo de ruim deliberadamente, era de uma ingenuidade rara, acreditava em todos, dois minutos de conversa e já considerava alguém a melhor amiga, ou amigo. Minha mãe sempre alertava sobre isso, mas ela preferia seguir acreditando. Ela era plugada na vida desde sempre. Morrer cedo nunca combinou com ela.
Durante a doença dela vivemos alguns resgates, alguns presentes que o câncer junto com o sofrimento nos entrega, desde que possamos perceber. A minha família se uniu muito, minha mãe e meu pai foram incansáveis nos cuidados e nas orações. Lembro que durante as piores dores, o único olhar que acalmava a minha irmã, era o da minha mãe. Curioso isso, várias vezes ela estava acompanhada pelos filhos e pelos maridos, o atual e pelo ex e não eram eles que a reconfortavam. Era o vínculo inicial de mãe e filha que se sobressaia, esse amor que não se mede e que na hora derradeira a ajudou a serenar.
O dia do velório foi lindo, já disse, a cena tinha a poesia da tristeza , ela linda no caixão, unhas feitas, rosto magro pela moléstia, mas perfeito nos traços. Um véu de renda a cobria. Um calor de 30 graus, no auge do mês de fevereiro. Muitas pessoas vieram prestar as últimas homenagens.
Observei a minha mãe, forte, triste, mas não havia desespero no olhar, as curas tinha tido tempo suficiente para acontecer, muitas delas aconteceram no silêncio dos olhares. Minha irmã tinha voltado a ser filha, um pouco de bebê naquele esquife, minha mãe zelava por ele, como se ela estivesse em um berço, ora a cobria, ora verificava se estava tudo bem. Sei que para minha mãe nunca mais ficaria tudo bem.
Meu pai sempre tão forte, tão dono de si, foi apequenado pela dor que sentia. Sua fragilidade era evidente. Foi triste vê-lo chorar.
De tudo, guardei para mim o último encontro que nós duas tivemos na noite em que ela partiu, lembro do gosto do último beijo que lhe dei no rosto, do seu olhar me dizendo que sabia para onde estava indo, um olhar assustado e ao mesmo tempo tranquilo.
Doravante teríamos a presença da sua ausência, um espaço não preenchido em todos os Natais, aniversários e finais de ano.
Depois da sua partida seguimos. Ficou a saudade e a memória de tantos bons momentos vividos. Coleciono essas lembranças para que ela continue vivendo dentro de mim e assim não morra jamais.


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GISELE

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