Chego em casa
às 17h, após os exames e as reflexões diárias, penso se irei ao curso de
autobiografia. Apesar da vontade de
ficar em casa, decido ir, talvez o dia se mostre melhor do que começou. Tenho
aula na Casa Camaleão e não quero faltar.
Hoje o dia foi
puxado, exames que agora são rotina, mas que me invadem e me arrancam um pouco
desse mundo, sinto que me alma fica pendurada no mundo de cá e no de “lá”, me
sinto suspensa no ar, em uma dobra do tempo que só se estica de novo quando os
resultados saem. Demorei muito para
perceber que a minha vida ganharia uma nova identidade com o surgimento do
câncer, lutei muito para não me ver como uma paciente oncológica, na verdade
lutei por sete anos, queria esquecer as desventuras que me atingiram no
primeiro câncer. E não teve jeito, ele
voltou e me colocou para dentro dessa realidade concreta que é o tratamento
oncológico, hoje trato o terceiro tumor. Passados alguns meses do período mais difícil,
a quimioterapia e a radioterapia, me livrei da fisionomia de sobrevivente do
holocausto, os cabelos já parecem normais... Mas a vida está longe de ser como
um dia foi. Aos 41 anos quando o primeiro tumor apareceu, eu quis muito a minha
vida anterior de volta, hoje com 49 eu vejo que o câncer tem sido meu mestre e
já que não pude evitá-lo resolvi enfrentá-lo e ver o que ele tem a me dizer. Os
sintomas começam pela manhã, acordar e levantar da cama, é o primeiro desafio,
as articulações não respondem, há dores no corpo, efeitos colaterais das medicações
que sigo tomando. Coloco a primeira perna para fora da cama e sinto os
calcanhares fora do corpo, qualquer semelhança com a barata de Kafka, não é
mera coincidência, tentativas daqui e dali, levanto. A primeira decisão será se tomarei um analgésico
ou seguirei para a academia. Quase sempre decido por sair e me movimentar, mas
há dias em que ficar em casa recolhida me parece a melhor opção.
Decido ir para
a Casa Camaleão, chego à sala de aula e
sinto que a cabeça começa a doer, olho para esse espaço tão cheio de
significados e de energias de mulheres e homens como eu que seguem vivendo um
dia de cada vez, buscando, se reinventando, se reformando por dentro e por fora
e penso, vou melhorar, vou me esforçar para ficar bem, vou aguentar mais um
pouquinho. Tento me distrair olhando o cenário com atenção: reparo nas perucas,
a dor de cabeça se intensifica, eu imagino que elas estão ali tremulando,
esperando a cabeça certa para poderem ganhar vida, imagino que há um encaixe
oculto para cada cabeça, uma conexão invisível, onde é preciso saber domar aquela
peruca para ela se manter em cima da cabeça, algo como no filme Avatar, onde os
Navis, precisam encontrar o seu parceiro alado... Que viagem! Acho que exagerei
no analgésico, o que é que eu tomei mesmo?
Mudo a minha
atenção para os camarins, lindos coloridos com luzes brilhantes, eu sempre quis
ter um, aqui eles servem para satisfazer esse meu desejo infantil que sigo carregando
ao longo do tempo. Para mim as alegrias infantis se fazem presentes pela
memória de uma cor, um cheiro, uma luz colorida, alguém mais já sentiu isso? Eu
tenho guardado em mim estampas que remetem aos vestidos da minha mãe e avó... Lembro
disso olhando os lenços que estão organizados ao lado dos camarins, são coloridos, tem várias estampas. Algumas me
parecem bem familiares. Que droga de dor
de cabeça que não passa! Ai, enxerguei-me
no espelho, minha aparência, não revela o meu interior, eu me esforço para
parecer bem todos os dias, e é por isso que eu amo as maquiagens! Esse amor
começou na infância, em uma época que meninas de 5ª série não podiam se
maquiar, minha mãe dizia que eu iria ficar enrugada antes do tempo. Mesmo assim
me escondia no banheiro na hora do intervalo para passar batom e lápis de olho,
minhas maquiagens preferidas até hoje. Essa lembrança me fez rir, lembrando que
as minhas colegas e eu aprontávamos muita coisa, e que as nossas mães sempre
fingiam não perceber.
Volto ao
espelho, porque não falo que estou com dor? Posso pedir desculpas e ir embora,
voltar na próxima aula... Mas com essa cara será que alguém vai perceber que
tem dor? Será que não vão achar que é um fingimento? Bom pode ser, mas que
mania que eu tenho de me preocupar tanto com o que os outros pensam, eu sei que
a cabeça está doendo mesmo. Tá, tá doendo, mas eu não sou de fiasco, sou
daquelas que aguentam firme com o sorriso no rosto. Respiro e penso, que fingir
não é legal, me pergunto se isso é caso de terapia, ou se é só orgulho mesmo...
Tem um tanto de orgulho, mas também tem um tanto de vontade de viver, de não me
fechar e de não desistir. Reparo no filtro de sonhos, peço a ele que leve essa
dor embora, que me devolva ao momento, faço uma prece silenciosa, peço que essa
energia que aqui nesse espaço, com certeza fica retida me ajude. Recorro a vontade que eu tenho de me conhecer e me
reconhecer , desejo que seja mais forte que a minha vontade de ir embora. Respiro,
pego um chá quente e como um biscoito, me sinto em casa. Vou me concentrando
nos textos das colegas, me emociono, me reconheço em uma frase aqui, em outra
ali, fico feliz com elas, aprendo com o profe,
esse cara jovem meio tímido que nos brinda com leituras instigantes e partilha
sua sabedoria com uma simplicidade que encanta, comparo ele com o professor da
série Casa de Papel, acho graça, respiro... Vou me aconchegando e de repente a
dor vai ficando mais leve, não desaparece, mas fico até o final da aula e me
sinto bem por isso.