O dia
amanheceu lindo e ensolarado, em homenagem a ela, pensei. A madrugada tinha
sido triste e pesada, mas ao mesmo tempo libertadora. Minha irmã sofreu por
longos meses uma dor imensurável, causada pelo tumor que desenvolveu no colo do
útero. Incrível, oito meses são um flash desde que tudo esteja bem. O tempo tem
disso, é relativo, oito meses de dor, é quase inimaginável, minutos já bastam
para nos abater por completo. Na dor não existe força, bom humor, ou coisa que
o valha, a pessoa fica prostrada, não tem condições de ter vontades, o desejo
se concentra em uma única coisa, cessar a dor e quando isso acontece,
descansa-se da dor sofrida, até que ela reinicie. Vivemos isso com ela por
quase um ano. Foi possível cuidá-la e ampará-la e isso foi o que ficou. Nossa
presença junto dela até o fim. Morreu rodeada de amores aos seus 38 anos. Deixou
três filhos e um legado de alegria e bom humor. Da vida quis muito pouco, só
queria o amor, não investiu o tempo em ganhar dinheiro, não era ambiciosa, mas
era sonhadora. Era linda por dentro e por fora, amou muito, amou demais e
talvez esse dom tenha sido o seu martírio.
Não é assim
que é a vida? Recebemos alguns dons que acabam nos chicoteando? Ouvi isso não
sei onde, acho que em um filme, mas creio que em parte é verdade, uma loucura. Penso
que Deus não nos daria nada que nos levasse a infelicidade, mas é a parte
humana do orgulho, da vaidade que acaba corrompendo o dom. No caso dela não foi
diferente, não morreu santa, mas foi santificada pelo sofrimento. Os defeitos
permaneceram até ela ir embora, sonhadora até o fim. Certa vez, quando estava
internada, pediu para uma amiga uma cantoria, pedia música, não desistia de ser
feliz! Aproveitou a atenção derradeira que recebeu. Minhas melhores amigas a
adotaram como irmã, havia um revezamento para dormir no hospital e cuidar dela
durante longas madrugadas, às vezes calmas, às vezes duras. Durante o dia minha
mãe ficava e à noite a tarefa era desse grupo de mulheres que se juntaram e não
se largaram até tudo terminar, sou grata a cada uma destas, são irmãs de alma.
Minha irmã e
eu vivemos uma adolescência típica dos anos 80, pouca liberdade e muitos
conflitos familiares. Ela era três anos mais velha que eu, e na adolescência
invertemos os papéis. Eu sempre mais adulta. Ela gostava de namorar, gostava de
experimentar a vida e fez isso com incrível maestria. Porém não lembro dela ter
feito algo de ruim deliberadamente, era de uma ingenuidade rara, acreditava em
todos, dois minutos de conversa e já considerava alguém a melhor amiga, ou
amigo. Minha mãe sempre alertava sobre isso, mas ela preferia seguir
acreditando. Ela era plugada na vida desde sempre. Morrer cedo nunca combinou
com ela.
Durante a
doença dela vivemos alguns resgates, alguns presentes que o câncer junto com o
sofrimento nos entrega, desde que possamos perceber. A minha família se uniu
muito, minha mãe e meu pai foram incansáveis nos cuidados e nas orações. Lembro
que durante as piores dores, o único olhar que acalmava a minha irmã, era o da
minha mãe. Curioso isso, várias vezes ela estava acompanhada pelos filhos e
pelos maridos, o atual e pelo ex e não eram eles que a reconfortavam. Era o
vínculo inicial de mãe e filha que se sobressaia, esse amor que não se mede e
que na hora derradeira a ajudou a serenar.
O dia do
velório foi lindo, já disse, a cena tinha a poesia da tristeza , ela linda no
caixão, unhas feitas, rosto magro pela moléstia, mas perfeito nos traços. Um
véu de renda a cobria. Um calor de 30 graus, no auge do mês de fevereiro. Muitas
pessoas vieram prestar as últimas homenagens.
Observei a
minha mãe, forte, triste, mas não havia desespero no olhar, as curas tinha tido
tempo suficiente para acontecer, muitas delas aconteceram no silêncio dos
olhares. Minha irmã tinha voltado a ser filha, um pouco de bebê naquele
esquife, minha mãe zelava por ele, como se ela estivesse em um berço, ora a
cobria, ora verificava se estava tudo bem. Sei que para minha mãe nunca mais
ficaria tudo bem.
Meu pai sempre
tão forte, tão dono de si, foi apequenado pela dor que sentia. Sua fragilidade
era evidente. Foi triste vê-lo chorar.
De tudo,
guardei para mim o último encontro que nós duas tivemos na noite em que ela
partiu, lembro do gosto do último beijo que lhe dei no rosto, do seu olhar me
dizendo que sabia para onde estava indo, um olhar assustado e ao mesmo tempo tranquilo.
Doravante teríamos
a presença da sua ausência, um espaço não preenchido em todos os Natais, aniversários
e finais de ano.
Depois da sua
partida seguimos. Ficou a saudade e a memória de tantos bons momentos vividos. Coleciono
essas lembranças para que ela continue vivendo dentro de mim e assim não morra
jamais.